10 de outubro de 2014

Patrick Modiano, prêmio Nobel de literatura em 2014: trecho inédito em português



Patrick Modiano é o 15º autor francês a receber o prêmio Nobel de literatura. Nascido em 1945, já publicou cerca de 30 romances, a maioria deles transitando entre o ficcional e o biográfico, entre a história e a memória, concentrando-se essencialmente no período da II Guerra. O trecho a seguir faz parte do livro Rue des Boutiques Obscures [Rua das Lojas Obscuras], com o qual recebeu o prêmio Goncourt de 1978. Pouquíssimo traduzido no Brasil, espera-se que, como é de praxe com autores que recebem o Nobel, Modiano seja intensamente publicado nos próximos anos.



Na ilha, seguimos por um caminho coberto de grama e rodeado de coqueiros e jaqueiras. De tempos em tempos, um muro branco baixo marcava o limite de um jardim no meio do qual se erguia uma casa – sempre a mesma – com um alpendre e um telhado de zinco pintado de verde.
Desembocamos em um grande campo cercado de arame farpado. Do lado esquerdo havia vários hangares, e, entre eles, um edifício com três andares, de um bege rosado. Fribourg me explicou que se tratava de um antigo aeródromo construído pelos americanos durante a guerra do Pacífico e que era onde Freddie vivia.
Entramos no edifício de três andares. No térreo, um quarto mobiliado com uma cama, um mosquiteiro, uma escrivaninha e uma poltrona de vime. Uma porta dava acesso a um banheiro rudimentar.
No segundo e terceiro andares, os cômodos estavam vazios e azulejos marcavam as janelas. Um pouco de entulho no meio dos corredores. Em uma das paredes, haviam pendurado um mapa militar do Pacífico Sul.
Voltamos para o quarto que devia ser o de Freddie. Pássaros de plumagem castanha entravam pela janela entreaberta e pousavam, em fila, sobre a cama, escrivaninha e estante de livros, perto da porta. Eram cada vez mais. Fribourg me disse que eram melros e que comiam tudo, papel, madeira, até as paredes das casas.
Um homem entrou no cômodo. Usava um pareo colorido e tinha uma barba branca. Falou com Maori, um gordo que seguia Fribourg como se fosse sua sombra, e Maori traduzia, se balançando levemente. Há quinze dias, a escuna com que Freddie queria ir até as ilhas Marquise havia se chocado contra os recifes da ilha, e Freddie não estava mais a bordo.
 Ele nos perguntou se queríamos ver o barco e nos levou até a laguna. A escuna estava lá, o mastro quebrado, e sobre as laterais da embarcação, para protegê-las, haviam amarrado pneus velhos de caminhão.
Fribourg disse que, assim que voltássemos, pediríamos que fizessem buscas. O gordo Maori, de camisa azul pálido, falava com uma voz muito aguda. Parecia que dava pequenos gritos. Não demorou para que eu não prestasse mais a menor atenção.
Não sei quanto tempo fiquei na beira dessa lagura. Pensava em Freddie. Não, ele com certeza não havia morrido no mar. Talvez ele tenha decidido romper as últimas amarras e se esconder em um atol. Eu acabaria o encontrando. Mas eu precisava tentar ainda uma última atitude: ir para meu antigo endereço, em Roma, na rua das Lojas Obscuras, 2.
A noite chegou. A laguna se apagava pouco a pouco, à medida que sua cor verde se fundia. Na água corriam ainda sombras de um cinza azulado, em uma onda fosforescente.
Tirei do bolso, maquinalmente, as fotos que queria mostrar a Freddie, e, dentre elas, a foto de Gay Orlow, ainda menina. Não havia reparado, até então, que ela chorava. Dava para perceber pelas sobrancelhas franzidas. Por um instante, meus pensamentos me levaram para longe dessa laguna, do outro lado do mundo, em uma estação balneária da Rússia do sul, onde a foto havia sido tirada, há tanto tempo.
Uma menina volta da praia, sob o crepúsculo, com a mãe. Chora por nada, porque queria ter continuado a brincar. Ela se afasta. Dobrou a esquina, e nossas vidas não se dissipam tão rapidamente na noite quanto essa tristeza de criança?



MODIANO, Patrick. Rue des Boutiques Obscures [Rua das Lojas Obscuras]. Paris : Gallimard, 1986, p. 249-251.

Sur l’île, nos suivîmes une allée couverte de gazon et bordée de cocotiers et d’arbres à pain. De temps en temps, un mur blanc à hauteur d’appui marquait la limite d’un jardin au milieu duquel se dressait une maison — toujours la même — avec une véranda et un toit de tôle peint en vert.
Nous débouchâmes sur une grande prairie entourée de barbelés. Du côté gauche, un groupe de hangars la bordaient parmi lesquels un bâtiment à deux étages, d’un beige rosé. Fribourg m’expliqua qu’il s’agissait d’un ancien aérodrome construit par les Américains pendant la guerre du Pacifique et que c’était là que vivait Freddie.
Nous entrâmes dans le bâtiment à deux étages. Au rez-de-chaussée, une chambre meublée d’un lit, d’une moustiquaire, d’un bureau et d’un fauteuil d’osier. Une porte donnait accès à une salle de bains rudimentaire.
Au premier et au deuxième étage, les pièces étaient vides et des carreaux marquaient aux fenêtres. Quelques gravats au milieu des couloirs. On avait laissé pendre, à l’un des murs, une carte militaire du Pacifique Sud.
Nous sommes revenus dans la chambre qui devait être celle de Freddie. Des oiseaux au plumage brun se glissaient par la fenêtre entrouverte et se posaient, en rangs serrés, sur le lit, sur le bureau et l’étagère de livres, près de la porte. Il en venait de plus en plus. Fribourg me dit que c’étaient des merles des Moluques et qu’ils rongeaient tout, le papier, le bois, les murs même des maisons.
Un homme est entré dans la pièce. Il portait un paréo et une barbe blanche. Il a parlé au gros Maori qui suivait Fribourg comme son ombre et le gros traduisait en se dandinant légèrement. Il y avait une quinzaine de jours, le schooner sur lequel Freddie voulait faire un tour jusqu’aux Marquises était revenu s’échouer contre les récifs de corail de l’île, et Freddie n’était plus à bord.
Il nous a demandé si nous voulions voir le bateau et nous a emmenés au bord du lagon. Le bateau était là, le mât brisé, et sur ses flancs, pour les protéger, on avait accroché de vieux pneus de camion.
Fribourg a déclaré que, dès notre retour, nous demanderions qu’on fît des recherches. Le gros Maori au corsage bleu pâle parlait avec l’autre d’une voix très aiguë. On aurait cru qu’il poussait de petits cris. Bientôt, je ne leur prêtai plus la moindre attention.
Je ne sais pas combien de temps je suis resté au bord de ce lagon. Je pensais à Freddie. Non, il n’avait certainement pas disparu en mer. Il avait décidé, sans doute, de couper les dernières amarres et devait se cacher dans un atoll. Je finirais bien par le trouver. Et puis, il me fallait tenter une dernière démarche : me rendre à mon ancienne adresse à Rome, rue des Boutiques Obscures, 2.
Le soir est tombé. Le lagon s’éteignait peu à peu à mesure que sa couleur verte se résorbait. Sur l’eau couraient encore des ombres gris mauve, en une vague phosphorescence.
J’ai sorti de ma poche, machinalement, les photos de nous que je voulais montrer à Freddie, et parmi celles-ci, la photo de Gay Orlow, petite fille. Je n’avais pas remarqué jusque –là qu’elle pleurait. On le devinait à un froncement de ses sourcils. Un instant, mes pensées m’ont emporté loin de ce lagon, à l’autre bout du monde, dans une station balnéaire de la Russie du Sud où la photo avait été prise, il y a longtemps. Une petite fille rentre de la plage, au crépuscule, avec sa mère. Elle pleure pour rien, parce qu’elle aurait voulu continuer de jouer. Elle s’éloigne. Elle a tourné le coin de la rue, et nos vies ne sont-elles pas aussi rapides à se dissiper dans le soir que ce chagrin d’enfant ?